Quantos Mega Man foram lançados na era 8-bits? Alguns dirão seis, outros tantos dirão sete, graças a Rockboard. E por mas que todas essas respostas estejam corretas sob certos critérios, elas não abrangem de fato todos os Mega Man lançados nesse período. Além dos jogos de NES, o clássico sprite de Mega Man ainda protagonizou cinco jogos no Gameboy, fazendo certo sucesso na época, mas caindo no ostracismo logo depois. O que é uma tremenda injustiça. Além de serem canônicos (o que sinceramente é o de menos se tratando de série clássica, mas ao menos isso lhes serve para assegurar sua legitimidade), esses jogos são uma aula de como transformar limitação técnica em energia criativa. E mais. Seus novos personagens e elementos só ajudam a tornar a mitologia da série mais rica. Muitas das inovações atribuídas a, por exemplo, Mega Man 7, surgiram primeiro nesses jogos de Gameboy. E para compensar a injustiça que é feita com eles, trago de volta a vida algumas análises sobre os cinco Mega Man de Gameboy, mas com um algo mais em cada uma delas. E qual lugar melhor para começar se não pelo primeiro jogo?
Imagine-se em 1991. Jogar em consoles portáteis ainda
era uma novidade, e a possibilidade de levar seu jogo favorito no bolso - ou ao
menos algo próximo dele - era uma ideia
fascinante. Dado o sucesso crescente de Mega Man no NES, era questão de tempo até que a Capcom decidisse replicar esse sucesso nos portáteis. E para preencher essa lacuna, foi criada a linha de jogos Rockman World. Seu
foco seria em lançar side-stories (histórias a parte dos eventos
principais de um enredo, mas que ainda fazem parte de seu cânone. E sim, nesse caso esse termo é mais correto que spin-off) focadas no confronto de Mega Man com os Mega Man-Killers - uma
linha de robôs inédita feita pelo Dr. Wily especialmente para derrotar Mega
Man. Além disso, ela traria de volta as fases e robot-masters de outros jogos,
mas com novidades para diferenciá-las de suas versões de NES. Mas fazer
isso tudo não era algo tão simples quanto pode parecer.
Tela de título : simples e direta |
Mesmo que o Gameboy pudesse reproduzir sprites próximos aos vistos no NES, sua capacidade gráfica era menor que a de um console de mesa. Some isso a ausência de cores e o pequeno tamanho de sua tela e o resultado é um grande problema para os desenvolvedores. Para driblar essas limitações, era necessário não apenas esforço e competência, mas criatividade. Logo, não era incomum que os jogos do Gameboy se parecessem com versões "menores" dos jogos de console de mesa, mas com algum diferencial que justificasse sua existência e os adaptasse melhor ao portátil. Um exemplo muito bom disso é a série "Super Mario Land", que por não poder se igualar aos outros jogos da série principal de Mario, fazia uma releitura de seus elementos básicos, mas os mesclando com conceitos inéditos na série até então. Era a criatividade versus as limitações.
Super Mario Land - O equivalente "Nintendístico"da série Rockman World |
Semelhante, porém diferente |
Dr. Wily's Regevenge começa modesto. De inicio, temos quatro fases disponíveis, sendo seus bosses Cut Man, Ice Man, Elec Man e Fire Man, todos originários do primeiro Mega Man. Suas fases são visualmente semelhantes as de seu jogo original, mas com level design diferente. No geral, as fases ainda mantinham aspectos de suas versões originais, mas é possível chamá-las de inéditas sem dizer nenhum absurdo. A maior parte dos elementos gráficos originais foram mantidos, mas não sem ajustes para caberem melhor na pequenina tela do GB. Um exemplo disso são os clássicos "quadrados que aparecem e somem", que nesse jogo ganharam uma forma mais achatada, e assim seriam representados em suas sequências. Outro aspecto digno de nota é a mudança da "cor de vazio". No NES, tal cor era o preto, e é comum que houvessem fundos de cenário em Mega Man que fossem todos pretos. Era algo que surgia graças a limitação gráfica, mas que se desdobrou em estética, dando sensação de amplitude e impacto aos cenários e a elementos maiores na tela (pense nas batalhas contra Dr Wily). Já no Gameboy, tal cor era o branco, o que fez com que todos os cenários se tornassem inesperadamente "luminosos" para um jogo sem cores.
No level design, a coisa se deu da mesma
maneira. A fase do Elec Man, por exemplo, continua tendo seu foco em em
progressão vertical, mas a disposição das
plataformas foi modificada a fim de caber melhor na tela. Isso acabou
tendo um efeito positivo de tornar o jogo mais leve de se jogar, mas por
outro lado tornou o level design "lento" em dados momentos, pois a ação se torna menos intensa em uma tela menor e com menos inimigos. Mas o jogo não poderia se limitar a usar os mesmos elementos e apenas mudá-los de lugar, poderia? Nesse sentido, Dr. Wily's Revenge se diferencia não apenas criando elementos novos, como mesclando elementos dessas fases entre si. Um exemplo disso é a presença de Sniper Joes em quase todas as fases do jogo, enquanto no primeiro Mega Man eles apareciam em poucos. E isso é interessante pois além de dar mais aparições a um inimigo interessante, também serve para intensificar a ação, já que os Joe demandam muitos movimentos de esquiva e ataque.
Além disso, os novos elementos ajudaram a tela menor a não tornar o jogo tão estático. A fase do Elec Man ganhou "ventiladores" que empurram o jogador e tornam os puzzles presentes no estágio mais interessantes no que diz respeito a ação. A do Ice Man ganhou plataformas de gelo que se desmancham caso o jogador pule nelas, além de estalactites que tanto atacam quanto servem de plataformas. A fase do Fire Man não tem tantos elementos inéditos, mas adota um layout que prioriza pulos rápidos, gerando muita tensão. É valido também citar que todas essas fases ganharam inimigos de Mega Man 2. Mesmo partindo do primeiro jogo da série, Dr. Wily's Revenge nem de longe se limita a apenas reproduzi-lo de maneira preguiçosa..
Mas de todas as fases, a com mudanças mais drásticas foi a do Cut Man, que teve seu conceito visual e level design totalmente repaginado, e que agora sim parece uma serralheria (mesmo não parecendo muito, a fase do Cut Man no NES foi pensada para parecer uma serralheria). Curiosamente, a fase do Cut Man era uma das mais fáceis do primeiro Mega Man, mas aqui se tornou uma das mais difíceis. Cheia de esteiras, inimigos em formas serra e tesouras colocadas em pontos chaves para lhe dar dor de cabeça, essa fase é a mais intensa e desafiadora da primeira etapa do jogo. Diria até que ela lembra vagamente a fase do Metal Man (Mega Man 2).
Infelizmente, a Capcom acabou sendo conservadora em alguns pontos em que não era necessário. Tudo bem usar a jogabilidade mais básica da série, sem rasteiras, tiro carregado e outras regalias. O jogo funciona bem sem elas. Mas não acredito que tenha sido uma boa escolha não incluir E-Tanks. Apesar de ser possível terminar o jogo sem eles, sua presença no jogo o teria tornado muito mais
equilibrado, principalmente nas fases de castelo. E justamente nas fases de castelo é que esse jogo começa a se tornar mais interessante - e difícil! Ele consiste em apenas duas fases, que além de serem mais difíceis que todo o resto do jogo, são bem criativas e competentes. Em 2010, essas duas fases foram mixadas em uma só, se tornando uma fase extra em Mega Man 10, com Enker - o Mega Man Killer do jogo - como boss. Falando no Enker, ele é uma das coisas que me levou ao jogo. Seu design é carismático e exótico o suficiente para gerar interesse. Sua armadura tem um quê meio medieval, impressão essa reforçada por sua arma ser uma lança. Além disso, o conceito da batalha contra Enker também é criativo. Ao invés de atacar incessantemente, Enker se coloca em posição de defesa durante a maior parte do tempo. Nesse momento, é possível lhe causar dano atirando com o Buster, mas quanto mais tiros Enker sofre, mais energia ele absorve, gerando assim uma onda de energia mais poderosa. Após isso, ele corre ou pula na direção do jogador no melhor estilo Quick Man, mas de maneira bem menos aleatória. Por essas caracteristicas, a batalha em questão acaba tendo algumas camadas de estratégia. Atirar com calma e diminuir a força do boss ou atirar incessantemente e torná-lo mais letal? Essa dualidade dá camadas de dificuldade, mas também me permitiu derrotá-lo sem sofrer dano (coisa que não costumo conseguir em bosses de Mega Man). A unica coisa mais criticável quanto ao personagem é a falta de narrativa ou mistério em torno dele. Sua única aparição relevante no jogo é em sua batalha, e após ser derrotado, só retorna a dar o ar da graça rapidamente nos créditos finais, mas sem de fato ter qualquer ação ali.
Enker, o primeiro Mega Man Killer |
No geral, a falta de mais narrativa e atmosfera é um problema não só de Enker, mas do jogo em si. O enredo geral do jogo é bem batido, e não
acrescenta muito ao universo da série, sendo sua maior contribuição o conceito de Mega Man-Killer. Mas desde enquanto enredo importa em Mega Man? Bem, não é que eu espere grandes tramas, mas um pouco de contexto e narrativa sempre ajudam. Olhem para Mega Man 4, jogo lançado no mesmo ano que Dr. Wily''s Revenge. O mesmo tem um vilão inédito e cria mistério em cima dele. Temos também uma cutscene mostrando a origem de Mega Man, que ajuda muito a construir a atmosfera heroica em torno do personagem. Enker, um robô com a habilidade de criar ondas de energia que refletem o Buster de Mega Man poderia ter um pouco desse carinho. As vezes, não é preciso muito mais que isso para gerar interesse e carisma. Porém, esse era o primeiro Mega Man portátil até então, tornando a comparação um tanto injusta.
Dr. Wily's Revenge era um jogo experimental, e era necessário começar de algum lugar. Por esse prisma, o jogo é sólido e satisfatório. Mas é um jogo dificil, principalmente em suas fases finais. Nelas, tudo se torna mais extenso e
punitivo, tornando-as um verdadeiro desafio a ser batido.
Na primeira delas temos o clássico "Boss Rush", para só depois lutarmos contra Enker, mas ao invés de enfrentarmos os bosses de antes, enfrentamos Quick Man, Heat Man, Bubble Man e Flash Man, de Mega Man 2.
E acreditem, derrotá-los não é fácil, ainda mais pelo jogo não ter nos dado a chance de testar previamente suas armas, fraquezas e padrões. Mas tal esforço gera recompensas: além de adicionarem variedade ao jogo, temos a
vantagem de ganhar suas armas depois de vencê-los (apesar de que a
essa altura do campeonato elas não tem tanto uso). Todos esses detalhes contribuem para gerar sensação de estranheza, mas não tornam o jogo ruim. Em dados momentos ele se torna cansativo, mas em outros, fascinante, justamente por essa natureza peculiar. A trilha sonora é
praticamente toda retirada do primeiro Mega Man de NES, com melodias
praticamente sem alteração, tirando algum downgrade ou outro esperado de um jogo de Gameboy. É
competente, e não sei se é possível pedir mais que isso. Ainda mais que, quando temos temas inéditos nas fases de castelo, eles serem verdadeiramente bons.
Uma pequena compilação da trilha sonora do jogo
Uma pequena compilação da trilha sonora do jogo
Mega Man: Wily's Revenge é um jogo fácil de se considerar anacrônico, pois além de séries portáteis como Zero e ZX
já terem se igualado tecnicamente aos Mega Man dos consoles de mesa, é
possível também jogar a maior parte da série Mega Man em dispositivos
móveis. Isso sem falar de Rockman X Dive, um jogo totalmente adaptado a realidade dos jogos mobile de seu tempo. E sim, Dr. Wily's Revenge também é jogo de seu tempo, que conseguia entregar uma
experiência sólida de Mega Man para se levar no bolso e jogar em
qualquer lugar, mesmo que seus méritos individuais sejam basicamente
esses. Não é um jogo ruim, e vale a pena dar uma chance a ele, mas além
de seus sucessores terem o superado, é preciso saber contextualizar
sobre a época do jogo antes de avaliá-lo negativamente. Feito, isso, ele oferece um
desafio legitimo que pode ser divertido aos que procuram um jogo de Mega
Man diferente para jogar. E devido a dificuldade das fases finais,
terminá-lo gera uma grande sensação de satisfação, mesmo que ela venha
apenas meses depois de começar o jogo (meu caso). Vale como desafio e
como "pesquisa histórica" de Mega Man.
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